O impacto da palavra Alzheimer nas nossas vidas é devastador. Vista como uma espécie de epidemia moderna ligada ao envelhecimento da população, a doença é responsável por cerca de 60 a 70% dos casos de demência. Em Portugal, que deve vir a tornar-se o país mais envelhecido da União Europeia já em 2050, estima-se que existam cerca de 200 mil casos. No Brasil, a doença é responsável por cerca de 55% das demências. Mas o que é que sabe sobre o médico que lhe deu nome? Sabia que a primeira paciente identificada tinha apenas 51 anos? Descubra connosco as origens do diagnóstico de Alzheimer.
O psiquiatra que gostava de anatomia
Alois Alzheimer nasceu a 4 de junho de 1864, na pequena vila de Markbreit, na Baviera. O pai era um notário real do reino da Baviera, cuja primeira esposa morreu pouco depois de terem o primeiro filho. Voltou a casar, desta vez com a irmã da falecida mulher, e o primeiro dos seis filhos que tiveram foi Alois.
O futuro médico mostrou desde sempre uma aptidão para a área das ciências naturais, tendo feito o ensino secundário em Aschaffenburg. Em 1883, começou os estudos na Universidade de Freiburg, em Berlim.
O interesse pela anatomia surgiu logo no início. Foi precisamente com uma dissertação nesse tópico que obteve o diploma de medicina e, embora tenha frequentado uma grande variedade de seminários enquanto estudante, nada indica que tenha sequer assistido a algum sobre psiquiatria clínica.
Foi também nesta altura que começou a mostrar sinais de interesse nas duas áreas que o ajudariam na pesquisa que o tornou célebre:
Histologia – estudo da anatomia microscópica dos tecidos biológicos e plasmáticos
Histopatologia – examinação dos tecidos biológicos doentes para investigar as manifestações de uma patologia
Mas em 1888, recém-diplomado, é pago para viajar com uma mulher que sofria de doença mental. Este género de acordo, sem dúvida bizarro para os padrões modernos, era esporadicamente celebrado entre algumas famílias alemãs ricas e os médicos recém-formados.
É provável que esta viagem, acerca da qual pouco se sabe para além das datas, tenha mudado para sempre o curso da carreira de Alois Alzheimer. Ao voltar, o jovem de 24 anos candidatou-se a uma vaga no Hospital Comunitário de Pacientes Psiquiátricos e Epiléticos (Städlische Anstalt fur Irre und Epileptiker) de Frankfurt am Main. Seria lá que passaria os 15 anos seguintes. Trabalhou sob a supervisão e mentoria do diretor, Emil Sioli.
Foi também aí, em 1889, que conheceu Franz Nissl, o neuropatologista alemão que se viria a tornar num colaborador de longa data. É provável que tenha sido Nissl a partilhar com Alzheimer muitas das técnicas que o viriam a ajudar nas suas pesquisas histopatológicas futuras. E embora as particularidades da sua formação levem alguns a classificar o próprio Alzheimer como alguém mais próximo da neuropatologia do que da psiquiatria, ele definir-se-ia como psiquiatra clínico para o resto da sua carreira.
Crucialmente, Alzheimer acreditava que as patologias psiquiátricas eram “doenças do corpo”, com causas físicas identificáveis como todas as outras.
A perda de Auguste D.
O termo “Alzheimer” é hoje quase inevitavelmente associado à velhice. Mas o caso que Alois Alzheimer apresentou em 1906, na 37ª Conferência dos Psiquiatras do Sudoeste Alemão era o de uma mulher de apenas 51 anos. Auguste Deter (Auguste D.) foi internada pelo marido no Hospital Psiquiátrico de Frankfurt am Main em 1901.
Auguste tinha sido sempre uma mulher comum, pacata e reservada, até começar a exibir desorientação e instabilidade emocional. Tinha problemas com a linguagem. Fazia violentas cenas de ciúmes e começou a ser incapaz de completar tarefas básicas. As falhas de memória, insónias, alucinações e crises depressivas só viriam a piorar durante a sua estadia no hospital. Esqueceu-se de quem o marido era e de como se escrevia o próprio nome.
A abordagem de Alzheimer e dos colegas aos pacientes, que envolvia conversarem com eles, observarem e documentarem os seus sintomas, não era exatamente ortodoxa na altura.
Quando lhe perguntavam qualquer coisa que não sabia, a resposta de Augusta era quase sempre a mesma:
“Perdi-me, por assim dizer.”
O período de progressiva deterioração da paciente, que só viria a morrer em 1906, correspondeu a uma fase de mudanças na vida do próprio Alzheimer. O médico tinha casado com Cecilia Geisenheimer, uma viúva abastada, em 1895. Mas ela morreu em 1901, poucos meses depois do nascimento do terceiro filho do casal.
Em 1902, mais de um ano depois da morte da esposa, e depois de já ter rejeitado uma oferta anterior, aceitou finalmente uma posição de investigação no Hospital de Heidelberg. Era já lá que Nissl trabalhava, e encorajou o amigo a aceitar o convite.
Embora Alzheimer fosse estimado em Frankfurt, Sioli apoiou a sua decisão de partir. E continuou a informá-lo sobre o progresso de todos os casos que lhe interessavam. Um deles era o de Auguste D.
Mas não foi em Heidelberg que Alzheimer fez a sua descoberta. Emil Kraepelin, o novo superior do médico, aceitou uma posição na Universidade de Munique no ano seguinte, e com ele seguiu toda a equipa de investigadores.
Alzheimer passou o ano de 1904, em que Kraepelin estava a viajar pela Indonésia, a supervisionar a construção do novo Hospital Psiquiátrico de Munique. Entre os equipamentos inovadores estavam os microscópios do laboratório histopatológico, que viriam a tornar-se cruciais para a pesquisa de Alzheimer.
Passamos então a Abril de 1906. Sioli, com quem o médico trabalhara em Frankfurt, informa-o da morte de Auguste D. Tinha uma pneumonia e uma septicemia devido às escaras. Depois da autópsia, Alzheimer recebe matéria cerebral da paciente para examinar.
Foi através desta análise que identificou pela primeira vez as alterações histológicas que viriam a definir a doença. Para além da atrofia cerebral, encontrou também as anomalias posteriormente referidas como placas senis e emaranhados neurofibrilares. O que isto significa é que havia agrupamentos da chamada proteína beta amiloide, que podem bloquear as sinapses, e emaranhados de proteínas tau.
Seis meses depois, Alzheimer viria então a apresentar o caso de Auguste D. na já mencionada Conferência dos Psiquiatras do Sudoeste Alemão. O anúncio declarava que o trabalho não era “adequado para comunicações breves”. Não recebeu uma única pergunta e passou totalmente despercebido. Nada indicava que se estivesse perante o início de uma grande descoberta da medicina.
Mas Alzheimer viria mesmo a publicar a sua investigação, em 1907, com o título de “Uma doença severa característica do cortex cerebral”. O caso da paciente viria a ser recuperado para uma publicação do médico italiano Gaetano Perusini, em 1909, que identificou pela primeira vez Aguste D. pelas suas iniciais.
Seguiram-se publicações de casos de pacientes com sintomas semelhantes.
Entre as adições mais relevantes para a definição desta nova doença esteve, por exemplo, a de Oskar Fischer. O psiquiátrica e académico checo, cujas contribuições para o estudo dos diversos tipos de demência foram obscurecidas pelo antisemitismo da época, acabou por morrer no gueto e campo de concentração de Terezin.
Foi em 1910 que Emil Kraepelin, superior de Alois Alzheimer, descreveu estes casos na 8ªedição do Manual de Psiquiatria. Nele era descrito um grupo de casos com “alterações celulares extremas” semelhantes às das formas mais avançadas de demência senil, identificadas pela primeira vez pelo médico alemão. O texto e as ilustrações elaboravam sobre as várias particularidades e possível interpretação clínica desta “doença de Alzheimer”.
Alzheimer, depois de Alzheimer
Porquê doença de Alzheimer? Porque não doença de Perusini ou de Fischer ou de algum dos outros psiquiatras que descreveram os casos posteriores?
É provável que a proximidade profissional entre Kraepelin e Alzheimer tenha determinado isto, assim como o desejo de prestigiar o laboratório de Munique e de ficar em vantagem na rivalidade com a Universidade de Praga. Também há fatores estritamente científicos, já que Kraepelin acreditava que Alzheimer identificara uma doença nova.
Entretanto, aquilo que entendemos por Alzheimer evoluiu muito. A doença, inicialmente vista como uma forma rara de demência senil que afetava pacientes com menos de 65 anos, é hoje vista como a causa mais comum de demência. Hoje, casos como os de Auguste D. e Johann F. seriam classificados como Alzheimer precoce.
Um dos maiores responsáveis pela redefinição da doença foi o neurologista Robert Kazman. Em 1976, o médico americano identificou a doença da Alzheimer como grande ameaça à saúde pública. Katz conseguiu demonstrar que a doença era mais do que uma forma pré-senil de demência, sendo comum em pessoas mais velhas.
Hoje, estima-se que aproximadamente dois terços dos casos de demência sejam causados pela doença de Alzheimer.
O final do século também trouxe novas evoluções ao estudo das alterações neurológicas que a causam. As proteínas beta-amiloide, responsáveis pelas placas encontradas por Alzheimer, foram descobertas em 1984. A proteína Tau, componente crucial dos emaranhados neurofibrilares, foi descoberta em 1986.
O material sobre o caso de Auguste D. esteve perdido quase até ao final do século XX. Os registos e material genético foram redescobertos em 1995, pelo professor doutor Konrad Maurer, nos arquivos do Hospital Universitário Goethe, em Frankfurt am Main. Todas as observações possíveis vieram a confirmar as descobertas de Alzheimer.
Alois Alzheimer teve uma carreira distinta, tornando-se numa das autoridades mais respeitadas da àrea da neuropatologia. Infelizmente, não foi necessariamente longa. Em 1912, foi nomeado diretor do Instituto Salesiano Universitário Friedrich-Wilhelm em Breslau pelo próprio Guilherme II da Prússia. Foi a caminho da cidade apanhou uma gripe. Seguiu-se uma tonsilite, que evoluiu para febre reumática, e viria a resultar na combinação de endocardite reumática e falência renal que o matou em 1915, aos 51 anos. A mesma idade de Augusta D. quando chegou ao hospital de Frankfurt am Main.
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